Nós, os ocidentais, não nos habituamos a conviver com a morte. Talvez necessitemos alguns milênios de amadurecimento espiritual para aceitá-la com naturalidade, resignação e regozijo; pois sob a ótica da dinâmica natural é morrendo que se renova, que se transforma, que se renasce, possibilitando, assim a majestosa e intrigante reciclagem genialmente preconizada por Charles Darwin. Mas o admirável cientista apenas dera corpo ao indelével ensinamento de Cristo, o qual estigmatizara que "somos pó e em pó nos transformaremos".
Não há nestas inflexões a intenção de demonstrar prazer mórbido, mesmo porque seria patológico; nem tão pouco macular a memória dos antepassados. Todavia, há sim, o intuito de salientar o quão hipócritas somos, quando nos deparamos com o derradeiro instante.
Foi-se o governador Mário Covas; aquele que viveu e morreu com dignidade, baluarte do civismo e da política nacionais. Paladino do sonho democrático. Herói bravo da insurreição ao autoritarismo militar. Amigo fiel. Homem de palavras soltas, destemido diante dos desafetos e desafios. Grande pai, ótimo marido, exímio democrata e conciliador. Desta forma, e muito mais, se adjetivou em uníssono o homem e o político.
É tanta qualidade que dá para desconfiar. Este homem não era humano. Seria um santo? A morte é mesmo purificante, porque para alcançá-la é preciso sofrer. O sofrimento induz à consternação e esta, por sua vez, tem demonstrado o poder de promover a aproximação dos opostos. Assim, através da união, da aceitação e da tolerância, purifica-se.
Numa figuração de cunho herege podemos afirmar que o périplo heróico do ilustre falecido abalou segmentos sociais tão adversos que seria como unir Deus e o diabo no mesmo sítio. Todos os “PÊS” do Brasil conseguiram encontrar termos comuns para enaltecer qualidades pessoais, que em vida, jamais admitiriam. Maluf, o Paulo, mesmo sabendo que agora ficará mais fácil sem Covas, marcou sua presença. Há! E o povão pop, palhaço, pobre, pagador, também estava lá. Naquele entremeio político e popular de tantos “PÊS”, com certeza, estavam as mães da Febem, os professores, os ex-bancários do Banespa. José Rainha, o sem terra, gravou sua entrevista emocionante. Lula, do PT e os camaradas da CUT, CGT, Força Sindical e similares, se acotovelaram ao lado dos mauricinhos ultra-direitistas da FIESP. Ainda bem que José Sarney, naqueles dias ,também internado para cirurgia de próstata não morreu, porque santo em dose dupla seria demais. O PCC, não telegrafou, mas em compensação, foi o mais coerente, não lamentou.
Como num passe de mágica os políticos brasileiros, responsáveis pela crise de falta de brio que nos assola, resolveram todos enaltecer a conduta honrosa de Mário Covas diante da imprensa, numa tentativa calculista e sutil de pegar carona na onda de civismo macambúzio que se instala na população votante nessas ocasiões. Curiosa a incoerência desses cavalheiros da política. Se têm a capacidade de reconhecer os valores de um homem probo, por que não adotam a mesma conduta? Questionados, todos se eximem e a resposta é imediata: "ruins são os outros!"
O falecimento do governador paulista teve pelos menos um ponto positivo. Nossos ouvidos cansados das notícias de brigas e acusações mútuas dos políticos, das chacinas metropolitanas, dos traficantes, que se infiltram pelo tecido social; do desemprego, do aumento desenfreado dos impostos e taxas, das mortes nas estradas, das agressões criminosas ao meio ambiente, das rebeliões dos nossos infelizes encarcerados na sua maioria condenados sumariamente pela exclusão social; puderam descansar.
Foi bom assistir a tantos segmentos, instituições e representações sociais unidos por um mesmo sentimento. Consenso e paz reinaram na terra. Uma sublimação somente alcançável nos momentos de consternação. Que bom seria se Deus iluminasse as consciências brasileiras, para que todos se unissem livres do egoísmo, do corporativismo e da dissimulação; purificados em torno de interesses comuns ainda que o preço a pagar fosse a morte providencial de um ou outro medalhão. Melhor futuro, com certeza, poderíamos assegurar aos nossos filhos.
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