Era
noite de verão! Chuva fina e abundante molhava os roçados e a esperança na vila
perdida lá naqueles cafundós que mal se ouvia falar. Pequenas casas esparsas,
uma aqui, outra ali, algumas acolá. Calçamento só se via em volta da praça
principal, onde ficava a igreja, a casa paroquial, o cartório. O resto? Era
barro puro... Luz? Graças ao intermédio do ranzinza e velho padre Tomé D’Além Castro,
que se valendo da ajuda da sua antiga amizade com tal deputado Dr. Juvêncio Mala,
conseguiu-se que chegasse; mas não era para todos, porque o antigo prefeito, larápio
como ele só, havia desviado a verba da instalação. Os postes de cimento, prá
mais de cem, há longos dois anos estavam lá no chão na entrada da cidade servindo
de esconderijo prá toda sorte de bicharada. A fiação da rede era perda de tempo
querer saber, porque de metro em metro também foi prá qui e prá li, de canto em
canto, sendo surrupiada do depósito da Prefeitura, prá servir aos compadres dos
compadres a título de empréstimo e devolução, que nunca mais aconteceu.
– “Aqui a luz
parece que tem medo de raio, vento e trovão. Toda vez que vem pancada, ela
treme, acende e apaga e depois se vai e só volta depois que o sol nasce. A
conta; essa nunca deixa de chegar cobrando tudinho!” Assim dizem os
moradores indignados.
Certa
vez, quando na inauguração da reforma da igreja e padre Tome, sua comitiva e o povão
andavam todos engalanados e felizes no meio da procissão carregando o
Santíssimo e rezando bem alto, tudo ficou escuro. O sacristão Celinho Marivaldo
da Cruz, mais um monte de gente cansaram de ligar prá companhia e nada. Até
parece que eles têm medo de escuro, porque toda vez que isso acontece, nunca
aparecem.
A
Escola, nem conto! Chove mais dentro que fora e muita da criançada fica
amontoada na metade das salas, pois a outra é trinca pra todo lado, cheiro de
mofo, morcego voando até na luz do dia. A primeira série junto com a segunda, a
terceira junto com a quarta; uma falação misturada nos ouvidos de todo mundo. As
professoras: tia Tita e tia Dinda, se revezam na diretoria prá mais de trinta
anos. As outras coitadas, além de ganharem uma miséria, ainda têm que agüentar
aquela grande meninada vinda de todo lado, arteira como ela só. Merenda é sempre
contada, pois nessas épocas de barreira, só no lombo de carroça e à distância
de muitas horas de marcha. Assim a criançada tem que escolher entre comer ou
ficar de ouvido no ronco da barriga.
– “Aqui nunca
teve hospital, nem médico, nem dentista. Sempre na época da campanha eles
prometem e prometem, mas nunca cumprem. Mas também qual doido vai querer vir
morar aqui nessas distâncias sem fim, sem caminho, nem de ida, nem de volta?”
Isso toda vida foi consenso geral.
A
prefeitura, na seca, manda buscar a comissão de saúde lá de Santo Antônio da
Ajuda e sempre vem um prático bom na extração, uma enfermeira caladona e sem
paciência com ninguém. Cara feia não existe maior do que a dela! E certo médico
gordinho, baixotinho, de bigodinho; o tal doutor Mário Carrasco da Boa Morte,
que não sabe mais nada que receitar “gardenal”,
pra quem anda mal dos nervos; remédio tarja preta, pra quem ta com dívida
pesada e não pode pagar, nem pegar no sono; e quando dá a hora de ir embora, a
fila pode ser comprida, gente morrendo que ele não quer nem saber, vai saindo e
resmungando prá todo lado. A única opção que sobra para o povo nessas horas é
só mesmo rezar pra Deus dar uma boa hora de morte.
Assim
nessa cantilena desse lugar perdido, sem misericórdia de ninguém, há vinte e
dois anos nasceu Miralda. Marivalda,
foi herança da parteira. A danada nunca cobrou nada pelo serviço de ajudar botar
a criançada no mundo; a única condição era que, se fosse mulher, o segundo nome
tinha que ser Marivalda e, se fosse homem, tinha que ser Marivaldo. E é o que
acontece até hoje. Brasil Felicidade foi idéia dum vereador malandro que a
família sempre votou nele e que nunca cansou de prometer que um dia o povo daquele
lugar seria muito feliz. O prefeito ladrão também tinha sido ele mesmo. Aliás,
por falar nisso, já ia me esquecendo! No último censo, que é quando o governo
manda aquela gente pra ficar perguntando um monte de coisa que não serve para
nada, porque a vida ruim nunca melhora depois que eles vão embora; chegaram à
conclusão que a cidade era campeã em Marivaldos e Marivaldas.
Havia prá mais de mil. Hoje; já deve ter muito mais! Só sei
que posso me lembrar de alguns: Tonho Marivaldo Mato Alto, Robertinho Marivaldo
Pinto Manso, Juquinha Marivaldo do Tonho Marivaldo. E mulher também tem a
Matilde Marivalda da Boa Morte. Essa, dizem que é prima de longe do médico Carrasco
da Boa Morte. Ah! E também sua filha, a Justina Marivalda Florentina da Boa
Morte e sua neta, a Tunica da Justina da Matilde. Não esquecendo que a menina
Túnica também tinha como segundo nome, Marivalda! Para satisfazer a curiosidade
dizem que a tal parteira já passou dos cem anos, mas na cara e no despiste aparenta
não ter nem setenta. O segredo de tanta longevidade e boa aparência, contam que
é uso de chá de mato picão escaldado em água de placenta todo dia antes de
dormir. O povo prefere morrer cedo, a tomar uma ingrizia dessa. Dr. Carrasco já
prometeu que um dia ainda vai tirar essa história a limpo. Quer saber se é caso
da ciência ou se é coisa de feitiçaria.
Miralda
Marivalda Brasil Felicidade, era apenas mais uma dessas tantas Miraldas
Marivaldas brasileiras felizes, que nunca havia estado num ginecologista,
exibia um belo sorriso desdentado, pereba na cabeça, nunca tinha usado
desodorante, mal sabia ler e escrever, nem nunca tinha visto uma certidão de
nascimento. Identidade e Carteira Profissional pensava em tirar um dia, se
sobrasse dinheiro da lavação da roupa que lavava no rio, porque na sua casa,
água mal dava para banho e cozinha. Até hoje o esgoto na rua rola a céu aberto.
Da sua casa não, lá tinha fossa, mas o vizinho já andava reclamando que a
poluição podia prejudicar sua cisterna, que ficava logo abaixo.
Cansada
de sofrimento e tanta desilusão, Miralda Marivalda Brasil Felicidade, nada
feliz, resolveu largar tudo e partir para nova vida na cidade grande. Diziam
que lá tudo era melhor. Havia trabalho, bom salário, carteira assinada, férias,
décimo terceiro, vale transporte, vale refeição, seguro desemprego e tudo mais.
Um céu, uma beleza! Em pouco tempo poderia ajuntar bom dinheirinho para o
futuro ou quem sabe, até se casar, com um bom moço que merecesse sua atenção.
Chegou a São Paulo, num Domingo de Ramos, lembrando do padre Tomé e sua
procissão. Chorou, mas não se abateu! Logo estava empregada na casa da
secretária de médico dona Ana Catarina da Boa Sorte. Havia procurado por todo
lado. Na indústria, restaurantes, supermercados, lavanderias e nada. Ninguém a
queria. Uma analfabeta, desdentada, não podia servir para nada! Mas dona Ana
Boa Sorte, resolveu contrata-la assim mesmo. Combinaram que o período era de
experiência por noventa dias e se tudo desse certo, ou seja, se Miralda
Marivalda fizesse bem seu trabalho, a contratação era garantida. Logo ganhou um
quarto, com banheiro só pra ela e televisão daquelas fininhas na parede. Tinha
até tv a cabo, coisa que nunca tinha ouvido nem falar. Dona Ana Boa Sorte, não
era rica, nem pobre. Vivia duma pequena pensão deixada pelo seu falecido marido
e ainda tinha que trabalhar para manter os estudos do seu único filho de criação,
que adotaram depois de madurões.
Miralda
Marivalda, tinha boa vontade, mas era tudo muito difícil. Não podia anotar
telefonemas, porque mal sabia escrever. Sua comida era trivial, afinal lá na Vila,
de onde saiu, tudo era simples. Miralda Marivalda analfabeta, misturava os
produtos de limpeza com os de cozinha, os de banheiro com os de lavanderia,
tinha medo da máquina de lavar e não gostava de atender ao interfone. Sua vida
era uma infelicidade total e ela já temia o desemprego, a volta ao fim do mundo,
onde era seu lugar. Sem esquecer que já havia queimado as mãos e várias camisas
boas do rapaz com aquele ferro de passar que mais parecia um dragão colorido
soltando fogo pelas ventas.
Não
houve saída. Dona Ana Boa Sorte, tirou um mês de férias e não foi para lugar
algum. Ficou em casa ensinando a Miralda Marivalda desempenhar bem suas funções,
afinal parecia boa moça e merecia o esforço; certamente daria bom retorno. Um
ano levou para que se transformasse numa exímia cuidadora da casa. Aprendeu
como ninguém a cozinhar, lavar e passar e até uma vez por semana ia ao super
mercado no carro da patroa, que naquela altura até carteira de motorista pagou pra
ela tirar. Miralda Marivalda Brasil Felicidade agora já sabia até ler de
verdade, era mesmo cidadã, com razão pra ser feliz no Brasil, como aquele
vereador mentiroso tanto falou. Já tinha conhecido e comido maçã argentina,
pêra, abacaxi, uva importada, queijo fino, azeitona, bacalhau, camarão, até
aquele tal de caviar. Dona Ana Boa Sorte não fazia questão de nada! Tudo andava
a sua vontade na casa.
Miralda
Marivalda arranjou namorado, resolveu se casar e com a bondosa ajuda de dona
Boa Sorte, conseguiu comprar sua primeira casinha. Claro que a entrada, a boa
patroa emprestou, para pagamento sem juros e sem tempo, porque banco do governo
ou não, só é bom de propaganda; na verdade, não serve para nada.
Mas
o pior ainda estava por vir. Dona Boa Sorte não podia imaginar que Miralda
Marivalda se enturmara com outras Miraldas do prédio, que logo começaram a encher
sua cabeça com um monte de espertezas e besteiras. A boa patroa, apesar da
bondade e pontualidade nos pagamentos, só assinara sua carteira um ano depois,
quando já podia nela confiar. Afinal,
dona Boa Sorte acreditava no bom senso e na gratidão de Miralda Marivalda. Enganou-se,
porque Miralda Marivalda agora, não só era feliz de verdade, mas também muito
esperta e bem informada. Consideração e gratidão são coisas que ficaram lá no
passado do cafundó. Arrumou um advogado e foi à Justiça do Trabalho, reivindicar
seus direitos.
A
boa dona Ana Boa Sorte; boa, mas ingênua, foi condenada a pagar com juros e
correção um ano de salário, mais horas extras, férias, décimo terceiro, multa, vale
transporte de todos os anos, ainda que Miralda Marivalda só mudara para sua
nova casinha houvesse pouco tempo. O advogado de defesa alegou que Miralda
Marivalda só conheceu a felicidade depois da passagem da dona Boa Sorte pela
sua vida. Porém, o juiz que é cego como a lei manda, porque ela também é cega,
condenou Dona Ana Boa Sorte à má sorte de pagar tudo de novo.
Dona
Ana Boa Sorte, a duras penas, aprendeu a não mais ser tão bondosa e ingênua e
não quer mais saber de empregar ninguém. Prefere se virar sozinha. Agora sabe
que gente desdentada, analfabeta e infeliz é culpa do governo ladrão que não dá
a Cezar o que é de Cezar, mas sabe e gosta de obrigar outros darem. Miralda
Marivalda teve três filhos, desmanchou o casamento, recebe vale gás, bolsa
família, pensão do marido, tem conta corrente, poupança, investe na bolsa, tem
carro do ano e até pensa em se formar e abrir um negócio. Mas lembra que nunca
vai fazer como a tonta da Dona Ana Boa Sorte fez com ela. Só vai empregar gente
bonita, letrada, perfumada, com todos os dentes, carteira de motorista,
identidade e tudo mais, porque esse negócio de dar a Cezar o que é de Cezar é
coisa de governo, não é problema de patroa. Lá naquele cafundó nunca mais quis
saber de voltar. AquiIo não era lugar prá gente esperta e bem sucedida como
ela.
ANTÔNIO KLEBER DOS SANTOS CECILIO