Foi naquele dia mesmo; o cinco de outubro, quando me foi concedido o DIREITO OBRIGATÓRIO ao voto; que acordei muito feliz. Mesmo sob a sombra do anacronismo indigesto, à moda brasileira, que até direitos nos metem goela abaixo, nada poderia me roubar a satisfação de votar. Doce obrigação a cumprir no único dia de ser rei de verdade. Levantei cedo, tomei banho inabitual naquela hora. Só não lavei a alma, porque isso ainda teria seu momento. Vesti-me à moda de sempre e tomei rumo, quase antes de todo mundo. Fui o primeiro da fila de gente de todo lado. Num instantinho a escola ficou lotada de entra sai, falatório, corre-corre contido, ar repleto de perfume de todo preço e qualidade, povaréu entrando aos borbotões como que se a instantes fechar-se-iam os portões e quem não veio, que viesse. Povo é assim mesmo com esse tal negócio de horário. Têm o dia inteiro, mas vai todo mundo numa hora só. Depois é aquela calmaria de fazer bocejo; horas e horas num pinga-pinga modorrento.
Mas, eu não! Eu não era povo; era rei. Para isso cheguei mais cedo e ocupei meu trono. Primeiro da fila. Oito horas deram início ao sufrágio e lá de dentro o sinal para entrar. O percurso da porta à urna era avenida iluminada e assim que apareci o foguetório comeu solto. Fogos coloridos davam tom ao brilho do instrumental. Primeiro tocaram o hino nacional em tom festivo. Depois o povo gritando a todo pulmão: Nosso rei! Nosso rei! Nosso rei! Aí veio a esquadrilha da fumaça em vôos rasantes, desenhando corações, demonstrando perícia e bravura em luppings fenomenais. Era fumaceira de avião e churrasquinho, a histeria popular, sons de bandas e fanfarras ao longe e mais perto; sem contar as milhares de bandeirinhas num tremular frenético. E o vozeirão não parava: Nosso rei! Nosso rei! Nosso rei! Do alto do meu trono real e da minha cara de soberano pude distinguir que o povo lá embaixo eram políticos cujas faixas continham inscrições: Vote em mim! Vote em mim! Lá estavam os ladrões e mentirosos que se locupletam dos nossos despojos e da nossa paciência brasileira. Aqueles que queimam nosso dinheiro suado fazendo fumaça intragável que mancha a sociedade e a transforma numa das mais corruptas, ineficientes, discriminatórias e degradantes do mundo.
Os reconheci, e fiz que não. Os festejos continuavam estrondosos. Lá embaixo o acotovelamento se acirrava mais e mais. Cá dentro do peito crescia a felicidade; não mais o orgulho de soberano prevalecia; agora um fio cínico de prazer pela desforra eminente. Era hora do acerto de contas carregado pelo ímpeto da vingança há muito instalada no peito ferido pelos desaforos e humilhações impingidos ao cidadão indefeso. Sorria espaçoso; porém, dissimulando o sadismo latente, a fim de camuflar o prazer mórbido que crescia segundo a segundo. Cheguei defronte da urna. Num átimo; a vingança, a dúvida e o remorso se engalfinharam. Afinal de contas, que soberano sou eu? Como hei de trair minha pátria; minha cidade? Fugir sem lutar? Lá embaixo a gritaria havia se intensificado. Eu, ali, paralisado como espectador da batalha. O coração começava a trincar; a pressão era insuportável. O tempo se esgotava. Afinal de contas como poderei ocupar esse delicioso trono por mais de trinta segundos? Subitamente fui acordado pela lembrança de que noutras vezes acreditei e a decepção não tardou. Políticos sempre se nutrem da falsidade e são parceiros inseparáveis da traição. Num arroubo estrondoso a decisão: anulei o voto. Com um tiro de 9999 bem no meio da multidão, que não parara de gritar, abafei o festim. Silêncio absoluto na corte, porque nos próximos quatro anos, pelo menos, não serei corroído pelo sentimento mordaz de ter sido feito idiota mais uma vez.
Caminhei à saída com meu DIREITO OBRIGATÓRIO cumprido. Na avenida, antes iluminada e barulhenta, agora silêncio e escuridão. Desci do trono e o mesário ridente agradecia. Título assinado agora jaz no fundo do bolso aguardando a próxima utilização; vai para a gaveta de documentos importantes servir de recordação e será arma mortífera também nas próximas eleições, porque certamente os malandros e larápios continuarão saciando a sede de poder no pote carregado de inocência e boa fé populares; e eu soberano os continuarei anulando, a todos, sem exceção; até quando me sentir respeitado e saciado de ética e moral.