JANELAS INDISCRETAS
A cidade era o Rio de Janeiro dos
anos setenta. Há quase quarenta anos o Rio já caminhava para o caos, mas nada
que se comparasse aos gigantescos problemas sociais e estruturais de hoje. Com
certo cuidado e alguma sorte ainda dava para se aventurar pelas madrugadas sem
o risco de ser assaltado, assassinado, estuprado, trucidado ou seqüestrado. O
Rio ainda era lindo de verdade!
Numa daquelas noites de alto verão,
quando o termômetro batia lá pelos trinta e oito graus e não havia cansaço capaz
de arrefecer o desconforto e fazer meu amigo Zé Airton pegar no sono, um
impulso arrebatador o fez se levantar e ir buscar um pouco de ar fresco no
janelão virado para a Rua Voluntários da Pátria. Muitas janelas ainda abertas,
certamente pelo mesmo motivo que atormentava meu amigo, ainda estavam de luz
acesa, de modo que os prédios defronte enfeitados com tantos quadrados e
retângulos brilhantes davam à paisagem certo ar festivo, além do tom solitário
e morno.
De repente, lá pelas tantas, quando o
torpor da madrugada suada e quente já quase desmontava o sofredor e o sono se
tornava maior que o calor, algo chama sua atenção de maneira arrebatadora. Num
daqueles quadriláteros iluminados aparece a figura de uma mulher seminua,
despreocupadamente se admirando no espelho de uma penteadeira que
deliciosamente ficava exatamente à frente da sua janela de luz apagada.
Zé
Airton não acreditou no que via. Esfregou os olhos uma, duas, três vezes; mirou
novamente para se certificar de que não estava sonhando, beliscou-se algumas
vezes e não teve dúvidas: era verdade! Aquilo só podia ser um presente do deus
da madrugada. O sono se dissipou, o cansaço virou ânimo, o calor ficou mais
fresco que a brisa das ilhas gregas e ele, como bom amigo que era, não podia
deixar de dividir com os colegas aquela graça, aquele show televisivo da janela
da vizinha exibida acesa na madrugada.
Saiu correndo, torcendo para que a
bela da janela demorasse no seu ritual de cuidados e poses femininas na frente
do espelho e da janela e foi bater à porta do apartamento ao lado, onde moravam
os amigos do peito, que àquela hora sonhavam, mas com outros anjos menos
sublimes que aquele da visão arrebatadora. Passados poucos segundos lá estava
uma turma de mais de vinte olhos compridos; considerando-se que dentre os dez
não havia nenhum caolho, a bisbilhotar a janela, a vida e a mulher alheias.
Naquela noite inesquecível, ninguém mais dormiu e o show que, assim como por
encanto começou também acabou, quando a estrela do filme da janela apagou a luz
e foi dormir.
O frenesi foi total e geral. Ninguém
falava noutra coisa por dias, até que Pedro Olívio teve uma brilhante idéia:
comprar um binóculo de alta potência, que pudesse aproximar o anjo para alguns
metros de distância. Uma vaquinha foi convocada e até os centavos da coca, do
cinema, do ônibus, da cerveja; de tudo, foram desvirtuados para a aquisição da
ferramenta bisbilhoteira. Várias noites passaram em claro e o retângulo antes mágico,
agora maldito, da janela iluminada não mais acendeu. Será o que estaria acontecendo?
Teria a bela da janela desconfiado de alguma coisa, viajado ou se mudado para
outra janela iluminada? Se esse infortúnio aconteceu, quem seriam os novos
felizardos das janelas opostas? Pelo menos descobriram que a tal inveja, esse
sentimento vil, pode existir até na imaginação e de alguém que nem mesmo se
conhece.
Não havia mais sossego e para
certeza de que não perderiam nenhum fortuito lance, dali por diante, montaram
uma vigília noturna cumprida à risca numa disciplina militar. Um rodízio foi
montado composto por ciclos de tempo que incluíam madrugadas e horas; de
maneira que todos se revezassem sem prejuízo para alguém. Até que um dia, lá
estava a visão inebriante enrolada na toalha exibindo-se e insinuando-se. A
correria foi tamanha que quase deixaram cair o binóculo. Mas felizmente foi só
um susto e a imagem ficou tão nítida que seriam até capazes de conhecer a
garota na rua, se a avistassem. Foi possível perceber que ela portava uma pinta
negra e grande do lado esquerdo da boca e também tiveram a certeza de que a
exibição era proposital. Impossível tamanho despropósito; claro que ela sabia
que havia uma turma de rapazes sedentos do outro lado da rua a poucas dezenas
de metros de distância e de altura a observá-la.
O show continuava! Vez por outra a
janela se acendia e lá estava ela, de toalha branca, vermelha, azul e, para
alegria geral, quando o calor era demais, nem toalha. A notícia correu a rua, o
bairro, a cidade, o mundo inteiro! A turma se esqueceu do velho e sábio ditado:
“o segredo é a alma do negócio” e um belo dia, quando todos nem sonhavam com
vulcões e tempestades, uma hecatombe aconteceu. O interfone tocou; era o
porteiro convocando Zé Airton à recepção. Um senhor, que se identificou apenas
como Marcão, gostaria de ter com ele um colóquio de super-homem para homem. Zé
Airton, na sua habitual malemolência calorífica e inocência de quem nada deve,
chegou à portaria e se deparou com o maior mamute que já havia encontrado em
sua vida. O cara, sem tirar nem por, era o próprio King Kong. Dois metros de
largura era pouco. De altura, nem se fala! Ao se deparar com tamanho gigante,
nosso Zé Airton quis retroceder, mas era tarde. O bruta monte já o havia
agarrado pelo pescoço e o acendido até a altura descomunal dos seus olhos.
Assim, cara a cara, Marcão com seu vozeirão de trovão decretou: - Se eu souber
que continuam olhando minha mulher pela janela ou em qualquer lugar, vou
esmagar todo mundo! Sacudiu o pobre nas alturas descomunais do seu corpanzil e
o soltou de encontro ao chão sem dó nem arrependimento.
Zé Airton, branco que nem filhote de
camundongo, cheio de vergonha e dores, subiu correndo, a fim de dar a notícia
para o resto da turma, que logo quis partir para uma revanche. O cara era muito
forte, mas a turma era grande! Em vão! Mais tarde, ficaram sabendo que Marcão,
além de grande e forte, era campeão de Boxe da liga dos pesos pesados. Não
havia chance e o jeito foi esquecer o anjo da janela acesa no calor da
madrugada carioca.
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Diante
da estória acima cabe a pergunta:
Quem
estava com a razão: Marcão, o King Kong ou a turma do Zé Airton e seu binóculo
bisbilhoteiro?
Enquanto a discussão se avoluma,
usarei a mesma estória, a fim de construir um paralelo com a espionagem dos
americanos sobre o nosso quintal. Todos estão cansados de saber que a gema das
informações importantes são segredos estratégicos, dentre eles militares,
comerciais, científicos e tecnológicos. Onde estavam os nossos Marcões e Zés
Airtons governamentais, que de maneira leniente nunca pensaram que a chave do
galinheiro não deve ficar sob a guarda da raposa? Agora, que a casa caiu, vão
tomar providências cabíveis? O Brasil é assim, desde a nossa colonização
sofremos essas ingerências e não aprendemos a nos posicionar fortemente.
Enquanto isso não acontece e continuamos
dormindo eternamente no berço esplêndido, envio meus parabéns para os
americanos, que trabalham em defesa dos seus interesses e uma sonora vaia para
os traidores que recebem nosso voto e gozam da nossa cara, enquanto apenas
fingem que trabalham três dias por semana em interesses pessoais e deixam o
Brasil enfraquecido e à deriva no oceano de incertezas futuras.
ANTÔNIO
KLEBER DOS SANTOS CECÍLIO.