Vimos há alguns dias as comemorações do “dia nacional da consciência negra”. Vinte de novembro; data mais significativa para a comunidade negra brasileira do que o treze de maio, pois naquele dia comemora-se o aniversário da morte de Zumbi. "Treze de maio, liberdade sem asas e fome sem pão", assim definiu o poeta gaúcho Oliveira Silveira o dia da Abolição da Escravatura em um de seus poemas, referindo-se à lei que libertou os escravos, mas sem lhes dar condições de trabalhar e viver com dignidade.
No idioma africano falado pelos ancestrais do herói escravo; Zumbi significa “Senhor da Guerra”. Portanto nada mais adequado associar seu nome ao combate ao racismo e à desigualdade histórica sofrida pelas populações negras, cultura que sobreviveu mesmo depois do fim oficial da escravidão no Brasil, em treze de maio de 1888, através da Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel.
Até aqui tudo bem, no entanto é preciso que façamos algumas considerações afinadas ao que o ex-presidente Jânio Quadros gostava de classificar como “forças ocultas”. Quais seriam as forças ocultas perigosas que poderiam influenciar negativamente as legítimas tentativas de conscientizar a cultura brasileira para respeitar e reconhecer a população negra definitivamente como um legítimo elemento da nossa etnia?
Respondendo a essa questão tão delicada me valerei do elementar exemplo da massa do bolo que não admite erro na receita; qualquer alteração na combinação dos elementos fatalmente trará prejuízo ao sabor e à textura final. Assim também funciona a política. Muitas das vezes direcionam-se esforços num sentido imaginando-se determinados resultados positivos sem jamais se calcular que efeitos colaterais poderão advir. Digo isso porque tenho observado certa paixão emocional das lideranças negras no trato da questão e por outro lado um sutil distanciamento do resto das forças políticas. Vêem-se cantores negros, políticos negros, jogadores negros, poetas negros, padres negros; mas pouquíssimos pares brancos engajados num esforço concentrado da sociedade brasileira como um todo. Certo que leis estão sendo promulgadas nesse sentido e até severas punições aplicadas aos contraventores, mas certo também é que não são bastantes leis e opressão, se não houver por parte de toda a sociedade uma espécie de incorporação cultural da idéia de igualdade entre as raças. As lideranças brancas se comportam de maneira leniente e fria diante da questão, ou seja: o problema é deles e eles que se virem. Prova disso é que se observam pouquíssimos brancos presentes em qualquer manifesto popular dirigido à conscientização de igualdade. O tema tornou-se politicamente correto não admitindo-se altercações contrárias a qualquer mínimo detalhe. Como exemplo, temos as cotas universitárias para negros. Seria essa uma forma justa de inserção social, considerando-se a realidade de tantos brancos pobres que não podem gozar do mesmo direito? Não estariam plantando autoritariamente novo tipo de tensão perniciosa entre indivíduos e segmentos sociais? Não seria esse um paliativo com resultados duvidosos, considerando-se que os alunos selecionados por quotas não trazem boa base do ensino primário e secundário e mais tarde seriam excluídos pelo mercado onde não há tolerância com profissionais mal preparados?
Os governantes sabem que sim e muitos educadores também. Entretanto mais cômodo e menos arriscado é lavar as mãos e deixar como esta para ver como é que fica. Defender o resgate de segmentos negros à custa de qualquer via tornou-se politicamente correto e rende voto. Numa análise livre de hipocrisia todos sabem que racismo é contra a pobreza e a ignorância, apesar dos esforços para exterminá-las serem sempre muito pequenos. Ninguém discrimina negros ricos e bem sucedidos, pelo contrário, muitos exemplares deles estão aí bem inseridos nas altas rodas da sociedade brasileira e mundial.
Estranhamente os governantes não se importam com o direito das populações pobres, negras ou brancas, a um ensino básico de alta qualidade. Ao contrário, o que se vê é o sucateamento das escolas primárias, o aviltamento da função do educador com salários baixos e políticas opressivas com cargas horárias excessivas e falta de recursos humanos e materiais de toda ordem. Situação essa largamente discutida e justo quando se sabe que o sucesso das potências industriais é baseado em educação de alta qualidade para todos desde os primeiros anos escolares. Não há outro caminho e outra saída, entretanto aqui no Brasil, e na América Latina como um todo, o populismo tornou-se cabo eleitoral e faz parte de um projeto neo-marxista em que morder e soprar é regra do jogo e parte do discurso, enquanto a ação depende de fatores premeditadamente inalcançáveis. Mordem, quando cobram uma das maiores cargas tributárias do mundo, inclusive dos pobres negros e brancos; expõem o setor industrial à concorrência internacional sem nenhum tipo de compensação fiscal ou tributária, assim reduzindo postos de trabalho dentro do Brasil e os criando lá fora; abandonam a infra-estrutura social e viária ou tentam amordaçar a imprensa. Sopram, quando desperdiçam recursos preciosos com políticas demagógicas em forma de bolsas e quotas disso e daquilo; mentem para a nação com desculpas esfarrapadas e índices de desenvolvimento manipulados; investem em propagandas sensacionalistas e enganosas; reforçam o descaso com a educação básica para todos; criam privilégios através de super-salários e super-direitos para alguns apadrinhados; fazem vistas grossas ao nepotismo nas altas esferas da administração pública.
O rapper MV Bill, foi um dos primeiros a intitular a campanha de igualdade racial no Brasil como “Consciência Negra”. Obviamente, porque a idéia se constitui no tema central do seu trabalho e o termo um bom acessório para facilitar a compreensão da sua tese. No entanto acho perigosa a sensação de unilateralidade que encerra. Prefiro acreditar que o cantor, na melhor das intenções, não pretendeu dar conotação unilateral à obra, todavia seria mais adequado intitulá-la como ‘educação antiracista’ ou talvez ‘conscientização racial’ soasse mais brandamente pelo seu sentido de totalidade. “Consciência Negra” simplesmente remete a certa parcialidade ou, talvez, a um ímpeto velado de conscientizar para ir à forra; o que não implica transformação ou transição para o bem. Este é o ponto negativo da política implantada, por embutir perigosamente um viés de retaliação racista ao contrário ou com mão dupla, uma vez que milhões de brancos também são pobres e não desfrutam de privilégios e nem todos os brancos ricos são racistas. Além do mais não é justo penalizar jovens brancos pobres pela má sorte dos negros escravizados e transferidos pra cá sob ferros pelos nossos queridos colonizadores e sua cultura da ganância exploratória e esperteza compensatória. É utópico e constitui-se uma irresponsabilidade combater a discriminação ao negro com a introdução da discriminação ao branco. O ato de discriminar partindo do elemento branco ou do negro, ainda que este tenha sido humilhado há séculos, é um ato vil. È preciso muito cuidado no trato dessa temática, pois há o risco de estarmos reforçando ainda mais a linha divisória entre as raças e se criando o racismo retaliatório, ou seja: aprofundando e oficializando a intolerância entre as raças, assim como aconteceu em outros países da América.