Pois é, hoje mais uma vez aqui juntos em família, comemorando o seu aniversário! Que felicidade! À primeira análise tudo nos parece repetitivo. Todos os anos a mesma coisa. Parabéns para você, salva de palmas, abraços, uma pequena reunião e no fim do dia tudo se acaba. Estabelece-se novamente a rotina diária e a única coisa certa é que ficamos mais velhos, mais próximos do fim. Essa talvez deva ser sua avaliação sobre o círculo vicioso anual do tempo e do espaço.
Pensamos e sentimos assim, porque erroneamente somos produto de uma sociedade superficialista e fútil, meio fértil apenas para o efêmero, onde somos ditatorialmente induzidos à valorização das aparências de quilate brilhoso da baixa temperança de caráter, um sistema onde tudo tem preço inclusive valores imemoravelmente sublimados como vida, honra, amizade e amor. A vigilância permanente é a única forma de nos mantermos incólumes às investidas contundentes e constantes desse sistema que se abastece e se farta da ignorância e da miséria material e espiritual.
Estar, portanto, aqui e agora comemorando seu natalício e cumprindo a agradável rotina, cultuando nossos valores familiares é a forma mais eficaz de combate à contracultura. Estamos orgulhosos de tê-lo cada vez mais velho e saudável ao nosso lado. Poder comemorar esta idade é dádiva divina. Quantos sucumbem muito antes vitimados por doenças e outras desventuras? Haja visto nosso estimado irmão e cunhado Paulo, um jovem que lutara obstinadamente pela vida tendo-nos oferecido, através do seu sofrimento, grande oportunidade de amadurecer e valorizar o fato de poder envelhecer.
Há setenta anos, nascia você num mundo prosaico para os parâmetros de hoje, sem parabólicas, celulares, computadores, jatos, bioengenharia e outras parafernálias tecnológicas, mas com certeza, muito mais humano e menos escravizante. Seus pais: um imigrante árabe e uma cabocla provinciana, folclórico e rude casal, vovô Ibrahim e vovó Maria; que apesar de desprovidos de qualquer burilamento intelectual, foram capazes de incutir em sua mente e em seu espírito grandes valores morais e espirituais, herança que você soube nos repassar com obstinada maestria. Temos muito orgulho da nobreza desse nosso tronco que nos ofereceu você, para que pudéssemos existir.
Sermos seus filhos foi sempre grande honra. Lembro-me dos nossos tempos de infância, quando naquelas frias e brilhantes manhãs de domingo você surgia na porta da cozinha cheirando a “água velva” enfatiotado em elegantes ternos de tropical inglês, pisando firme e barulhento nos saltos do “samelo” de cromo alemão. Era uma visão do quarto mosqueteiro! O homem mais forte do mundo, mais capaz, que todos respeitavam e que nos protegia contra tudo.
Na minha visão de menino você parecia invencível, todo poderoso, o super-homem. Era confortável sentir e desfrutar da segurança que nos oferecia. Nosso passado ao seu lado é uma epopéia gostosa e divertida e daria um bom épico. Viagens, pescarias, sessões de seriados como “o imortal, corda bamba, o incrível hulk e kung fu”. Havia ainda os memoráveis farwests com aventuras incríveis dos mocinhos, que você dizia serem seus amigos.
O tempo passou e não somos mais meninos sonhadores. Você do alto dos seus setenta anos é apenas um homem de dimensões normais, muitas das vezes vencido pelas frustrações e desilusões. Mas está aí, ainda, no seu posto de timoneiro desta família, ajudando, se preocupando, impertinente e apaixonadamente. Às vezes reclamamos um pouco, mas no fim aceitamos, porque sabemos que no seu peito há um reator atômico, que explode de amor por nós.
Hoje sou um homem e como tal tenho momentos de fragilidade, fraquezas e incertezas. Mas nestes momentos de maior vulnerabilidade, saber que você existe é como um oásis. Um simples telefonema, uma troca de impressões, ainda que não compartilhemos do mesmo ponto de vista, é um alento, um parâmetro a mais e por fim, sei que mesmo errando o terei ao meu lado. A vida, com sua aridez, torna-se mais branda e amena com sua presença; sua casa sempre foi e será um porto seguro, refúgio para nossos corpos e espíritos cansados.
Pai queremos que viva muito, que goste da vida, que se cuide mais, que se considere um vencedor. Tenha certeza disso olhando nos olhos dessas crianças, seus netos, sua descendência, seu sangue. Eles também precisam de você. Nós e eles o amamos. Mas, antes de tudo, gostaria que entendesse o verdadeiro sentido da afirmativa: – precisamos de você. Não há aí nenhum sentido de compromisso, obrigatoriedade ou responsabilidade de sua parte. Há, sim, um sólido espírito de corpo, do qual seriamos muito menos capazes e vulneráveis às insolicitudes da vida sem você.
Confesso que muitas vezes pedi a Deus que se tivesse que subtrair um de nós, que fosse eu o escolhido. Com certeza seria muito mais prazeroso morrer, que viver desprovido dos seus afagos, da sua presença, tal qual o filhote que perece no solo tórrido longe da brisa fresca que trespassa a árvore amiga.
Não posso, nesse momento festivo, em que exponho os sentimentos mais indeléveis de minh’alma deixar de mencionar e exaltar Lúcia, minha maior amiga e amante leal, que muito também o preza e com certeza corrobora tudo que aqui menciono. Talvez a assuste um pouco a evocação da morte, mas desde já rogo-lhe perdão e sei que entenderá que digo isso porque sou movido a sentimentos tão profundos com relação a você e a esta família, que só um abraço bem apertado e um beijo em suas mãos poderão faze-la entender a extensão do que digo.
Parabéns e muitos anos de vida.
Do filho Antonio Kleber.
ELE PARTIU 8 MESES DEPOIS, NO DIA 24 DE FEVEREIRO DE 2002, VITIMADO POR COMPLICAÇÕES CARDÍACAS PROVENIENTES DA OBESIDADE, DA QUAL NUNCA ADMITIU SE TRATAR.
24/02, um dia depois de "...parabéns para você, salva de palmas, abraços, uma pequena reunião...como sempre acontece."
ResponderExcluirInfelizmente no ano de 2002, o dia seguinte ao meu aniversário não foi um dia de volta a rotina, e sim um dia em que todos nós fomos surpreendidos por uma quebra desta rotina, e que gostaríamos de ter adiado ao máximo. Mas de qualquer modo, valeu por ter desfrutado de sua companhia por exatos 12 anos. Vai estar sempre na nossa memória.