Tamanho simplismo, no entanto, é incondizente com a insaciável satisfação humana, como também com a grandeza que a entidade Deus encerra. Surge então, a associação da idéia de Deus com o medo. O medo, um dos gigantes da alma, associado à grandeza de um Deus punitivo, capaz de controlar a natureza – às vezes revoltosa e assassina – ao seu bel prazer, introduzir doenças mortais e devastadoras e castigar com desventuras e azares de toda ordem.
Nessa torrente imaginativa entra em cena o maquiavelismo humano e cria-se a conveniente imagem do Deus político que comprava a fidelidade dos homens com indulgências e que, por outro lado, também podia condenar às chamas ardentes do inferno aqueles que não cumprissem à risca as determinantes do poder estabelecido. Estava instituída a forma mais sórdida de controle humano de que se tem notícia e em nome desse Deus seletivo e mal, os poderosos condenavam sumariamente aos horrores da fogueira ou da guilhotina aqueles que, pelo menos, não lhes fossem simpáticos.
Felizmente com a instituição do código internacional dos direitos humanos, com o aprimoramento democrático e o burilamento cultural, a humanidade vem se libertando desses grilhões mentais de que foi vítima por milênios e crer ou não em Deus deixou de ser um ícone de conduta ou de comportamento passando a ser um valor de foro íntimo e nada mais.
Mas as igrejas, e quando falamos delas nos referimos em cheio à igreja católica, pois é a mais influente e antiga; ainda têm em seus quadros homens que conservam ou, pelos menos tem saudades, daqueles velhos tempos em que Deus era a corda da guilhotina ou a lenha da fogueira. A tudo condenam como se fossem os donos da verdade, pouco se importando com os impedimentos que suas doutrinas falaciosas interpõem ao desenvolvimento humano-social da humanidade. São contra o controle da natalidade num planeta que não tem condições de manter índices populacionais crescentes; talvez porque sejam a favor da fome, da violência social e da indignidade a que a miséria submete o ser humano. Ou ainda, sejam a favor da perigosa destruição da natureza pelo pressionamento sobre as reservas naturais por absoluta falta de espaço e de opção de trabalho onde as oportunidades de executá-lo já tenham se esgotado. Se pudéssemos contatar aqueles que ainda estejam por nascer e lhes mostrássemos a realidade da sociedade cruel e seletivista e lhes fosse dado o poder de escolha, será que quereriam, mesmo assim, vir para o vale de lágrimas e ranger de garfos em panelas vazias ou de costelas debaixo de pontes? Segundo a lógica que vem governando o universo há, pelo menos, uns quinze bilhões de anos, acho que não; contudo, segundo os espíritas, eles viriam mesmo sem querer, a fim de expiar as faltas que cometeram na última passagem. Quando me refiro à lógica universal é porque ela é inteligente e racional e o sincretismo que nos vitima é débil e irracional.
“Graças a Deus” no meio de tantos cegos sempre há alguém com boa acuidade visual. Outro dia, numa celebração ouvi um sermão em que um padre sábio e inteligente criticava aqueles que vão sempre às missas dominicais e que durante a semana não praticavam o amor, este sim aconselhado pelo Deus bom no qual acredito. Dizia ele: “...a melhor missa é a convivência fraternal. De nada adianta estar aqui todo dia ou todo domingo comungando com carinha de santinho e no caminho passar por um irmão esfomeado e não lhe estender a mão. Cristo é aquele que lhe pede socorro. Quem não for capaz de enxergá-lo que fique em casa que lá é o lugar dos egoístas e falsos cristãos...”
Deus, portanto, existe nessa filosofia da fraternidade e na sintonia que ela tem com as leis que equilibram o universo. Quando deixarmos de temer Deus pelos castigos e malvadezas que ele possa nos impingir e passarmos a amá-lo e até enxergá-lo na arte universal que nos acerca figurada no irmão que passa, na flor que desabrocha, nos astros que povoam o universo aos bilhões separados por distâncias descomunais, na dinâmica da química que transforma elementos lhes dando múltiplas formas e cores, na sinergia dos átomos diminutos que formam os gigantes do universo, na natureza mantenedora da vida que nada mais é que o próprio espírito de Deus, que abrigamos em nosso corpo temporal e mortal; estaremos aptos a nos libertar da “miséria humana”.
A vida, esta sim, a própria imagem de Deus. Um fenômeno metafísico. Não podemos considerá-la uma ficção porque mantém nosso corpo ativo no espaço e no tempo. A ciência moderna com toda sua miríade de conhecimento não pode explicá-la. Talvez ouse apenas conceituá-la. Os cientistas não reconhecem tacitamente, porque temem críticas e preferem abstrair-se deixando aos colegas do futuro a tarefa de fazê-lo. Mas sabem que nunca farão, pois a ciência atua baseada em elementos concretos e a vida, apesar de ser uma realidade concreta, não é um elemento, mas um dom. Uma vez que não existam dons físicos, obviamente é um dom abstrato e, portanto, divino. A ciência conhece a composição físico-química de qualquer ser vivente. Ela poderá, e já está fazendo, manipular células e, no futuro próximo, até os genes, mas com a vida ela não se envolve. Seu espectro permanece um fenômeno que se transfere espontaneamente de um meio a outro, quando há condições para tal. Se assim não fosse estaríamos fabricando ovos capazes de originar novas aves ou mesmo produzindo sementes férteis como as naturais.
Deus existe! Devemos acreditar piamente nisso porque existimos, e na sua sublimação maior Ele ainda nos dotou de razão e de liberdade de ação e escolha. O homem ser uno no universo com estas características. Nem os corpos ciclópicos do cosmos são dotados dessa capacidade, e estão obedecendo a uma prévia ordenação.
Partindo dessa premissa devemos concordar com a preocupação das igrejas com a preservação da vida, mas devemos discordar dos seus métodos manipuladores de amedrontamento diante de um Deus retalhador. Concordamos com a preservação da vida no seu ninho, ou seja, no ventre; mas discordamos, quando se trata da sua indução irresponsável e inconseqüente. Condenar o uso responsável e asséptico de métodos anticoncepcionais é também condenar a vida a um reles lugar no altar universal.
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